terça-feira, 22 de julho de 2008

POEMAS

O RINOCERONTE
Luciano Nunes

Abra seus olhos na selva escura
Aprenda a tatear
Tocar a pele do rinoceronte azul
Que acertou seu peito por dentro
Toque a sua pele com unhas de borracha
Planejando todo carinho
O coração é uma selva escura
Queime o rinoceronte azul, sem metáforas.
Acerte um espinho nos seus olhos
Cegue o rinoceronte, esse nome feio
Aperte o animal, mas não o mate
Ainda, aplique um sonífero.
Deixe-o dormir por trezentos invernos
Troque sua pele
Para que ele seja outra vez
Um rinoceronte cinza latrina.



CRÂNIO FORMATADO
Luciano Nunes

No último verão de barricadas
O verso pôs a mão no esmeril
E fez jorrar quinhentas mil palavras
Do crânio formatado mercantil
Sangrando vendavais e trovoadas
Varrendo todo quebrantar servil
Se já sofreu de rima ajoelhada
Agora tem a quadra corpanzil
O canto vem então por testemunha
Verter sobre as falanges do poema
Em linhas de vivência a dor rascunha
Logrando se livrar da estratagema
Onde a sociedade afia as unhas
E os cornos ardilosos do sistema.


VAZIO MELÓDICO
Luciano Nunes


Ergo-me na pedra com olhos de vinagre
Deixo-me coração medula ouvindo Milton
Ventania absoluta devorando estrelas cegas
No sono vadio da montanha esquecida
Faço-me barco sobre trilhos antigos
Levo-me à primeira pedra de vinagre azul
Aceso e elétrico deserto sereno sincero
Para ver o sol quando o comboio chegar.
Dentro do túnel vazio, aragem melódica
Não perturbaremos o descanso da pedra
Não machucaremos as presas dos anjos azuis
Para depois do espaço depois do vão depois
Mais oco e sem vácuo e por dentro de tudo
Para não perdermos as estrelas azuis.


FRATERNAL
Luciano Nunes


É muito fácil ser mais um no poço
Quem é capaz de alentar o dia?
Com o peito farto de melancolia
Sem o desdém palerma desses moços
Pela vitória fraternal eu torço
Essa vontade, plena simetria
A esperança é minha liturgia
De ver a mãe sair do calabouço
Em outro plano atravessar o fosso
Com o peito farto de eurritmia
Sem tua pele tosca sobre os ossos
Sete mil palmos ter por regalia
Quem será terno nesse tempo grosso?
É muito pouco um copo de anarquia.


ÉTER DEVOLUTO
Luciano Nunes


Estou a construir um gral de gelo
Onde sovarei muros de éter devoluto
Refazendo trilhas d’outro mundo bruto
Tento alimentar o sol pelos cabelos
Se eu me dissolver ainda sem sabê-lo
Um fogaréu no gelo torvo do meu rosto
Estou edificando um pré-moderno posto
A quem enviarei um pós-moderno selo
Vou reproduzindo algum canto matuto
No éter devoluto de antigos vendavais
O ócio dos mortais e seus sonhos caducos
Jogarei no lixo estético dos anais
Se eu me diluir em lágrimas de luto
É um reles tributo às horas terminais.


BYTES EDITADOS
Luciano Nunes


Em versos de mil pés aventureiros
Digito a vã loucura computada
Num zoom que ao findar vai dar em nada
Eu canto meu infindo passageiro
Queimei sinistras burras de dinheiro
Pois sempre quis o browse da estrada
Minha pena grafa assim conectada
A network de manos vanguardeiros
Petrarca estou clonando, é divertido!!
Em versos de mil pés de giga bytes
À farsa desse tempo achar motivo
Sobreviver fiel ao meu desastre
Por tudo ver-me verme vector vivo
E meus bytes editados nalgum site.


VELHA RUA NOVA
Luciano Nunes


No tempo miserável em que eu morria
Ouvindo a Rua Nova se afogar
Não soube o meu instinto examinar
Aquela insana terminologia
Doía-me a dor que anestesia
A alma, e fez-me o verso estilhaçar
Na Rua Nova a nave eu quis comprar
Ali no templo da verborragia
Um estudante de filosofia
De rua, vil meditabundo popular
Pateticando a minha rebeldia
Eu só queria a nave e navegar
Menino vai correndo a drogaria
Que a veia do passado quer sangrar!!



ALEIVOSO
Luciano Nunes


A vizinha morreu de aleivosia
Me disseram – motivo de cobiça
Pensei assim: a vida é uma notícia
De jornal. Lê-se tanta porcaria.
A morte comercial me anestesia
Eu lavo os olhos crus na imundícia
Pedindo a Deus a cura que enfeitiça
A dor. Detono bombas de melancolia.
Porque não tenho mais nenhum cigarro
Nem sei beber o teu rio de gelo
E se a vizinha suicida me agarro
É por ter muito mais asas no cabelo
Para beijar a mesma boca onde escarro
E vê-la apodrecendo nos espelhos.



CATALISADOR
Luciano Nunes

Cada vez mais moderno e mais antigo
Perambulo pelos contos da infância
E esse peito respira a mesma ânsia
De Ulisses enfrentado os seus perigos
O que tento dizer e não consigo
Infinitivamente desconhece
Onde vivo, soletrando a mesma prece
Para ter na solidão sempre um abrigo
Eu jamais acreditei no teu sorriso
Vendedor de tinturas e cadernos
Ternos opulentos, cataliso
Nesses dias de bagulho, o vão inferno
Não ser ponta do tempo é o que preciso
Cada vez mais antigo e mais moderno.




SEMELHANÇA
Luciano Nunes


Soberano planeta madrugada
Tua rota de fuga é minha meta
Sou aquele poema em linha reta
Mais um pouco de asa e eu era nada
Tô cansado dos deuses da cocada
Quero apenas um verso e um violão
Pra viajar anos-luz desse mundão
Para ser outra vez nova criança
Encontrar no que resta a semelhança
Da grandeza do pai da criação.


COGNIÇÃO
Luciano Nunes

"Sobre a terra os mortos caminham
abaixo jazem os vivos, aprisionados..."
HOLDERLIN

Enquanto você lia Holderlin
Eu escutava Roberto Carlos.
Leio todos os poetas
Para saber um pouco mais
sobre a vida.
Eu também aprendi muito cedo
A amar os pássaros.


METAFÍSICO
Luciano Nunes

Ainda não sei
E nem sei
Se preciso saber
O que me contam
Sobre essa Era
As novas bíblias virtuais
Eu continuo na estrada
Com meus sapatos tortos
Minha guitarra e meu matulão
Meu sertão metafísico
E o diário de um detento.


TÚNEIS
Luciano Nunes

Não me quero num verso só meu
Tem muita coisa no mundo sem mim.
Vou tentar me esquecer quando atravessar a rua
Olhando às crianças e os velhos deuses.
Deus sabe que meu coração não me leva tanto
Para os palcos do eu sozinho nas estrelas.
Meu verso é a longa estrada
Toda paisagem, todos os bichos
Mares, plantas, gente.
Todos os túneis do tempo no olhar da alma.



TIA CLARA
Luciano Nunes


Recife do poeta João Cabral
Recife de Tia Clara
Que fazia um feijão preto delicioso
Com aquela charque de feira.

Barriga cheia
Quem chegasse fazia o prato
Era aquela festa de farinha e Fanta
Ô Tia Clara
Que falta faz a sua bondade.

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